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 Estresse Pós Traumático: A Situação Emocional de Pessoas Vítimas de Violência

Artigo publicado na Revista Psicologia Brasil, São Paulo, número 6, 2004, p. 10-14.
Artur Thiago Scarpato

As pessoas que vivem em cidades em que a onda de violência está aumentando, têm que lidar com um problema cada vez mais freqüente, o estado das vítimas após uma situação de agressão. As situações vividas podem ser várias: assaltos, acidentes de trânsito, seqüestros, violência sexual, presenciar uma situação violenta que ocorre com outra pessoa, entre várias outras

Todas estas situações podem ultrapassar o limiar de tolerância de uma pessoa em relação ao que ela experienciou. Assim, para algumas pessoas, a experiência de violência pode ser vivida como traumática, o que significa que a pessoa vive uma intensa reação de estresse na situação, sendo que a reação não se desfaz e a pessoa não retorna ao seu estado psicológico habitual.

Em situações ideais, uma pessoa que se depara com uma situação de agressão, vivencia uma alta intensidade de estresse no momento e logo depois do evento, mas tende a ir voltando ao seu padrão de funcionamento com o passar do tempo. (Selye, 1974, 1976).

Para entender este fenômeno é importante que nós possamos compreender os mecanismos da experiência de violência e os modos como uma pessoa pode viver a agressão durante e depois do evento. Há vários fatores que podem contribuir para que uma pessoa não volte ao seu estado habitual após uma situação de agressão: a idade e o momento em que o evento ocorreu, a intensidade e a duração da experiência, o nível de impotência que a pessoa sentiu, o sentido da experiência na história de vida da pessoa, os sentimentos que a situação despertou, como medo, pavor, raiva, etc.

Os Diferentes Modos de Reagir

Diferentes pessoas não reagem do mesmo modo a uma situação violenta. Quando duas pessoas vivem uma mesma situação de agressão, uma pode ficar traumatizada, enquanto a outra retoma a sua rotina em pouco tempo. Cada pessoa tem uma história singular de agressões e estresses em sua vida, cada uma associa o evento agressivo atual a experiências específicas de seu passado. Uma série de fatores como estes tornam alguém mais vulnerável a determinadas agressões, determinando os limites entre o assimilável e o excessivo.

Por exemplo, durante uma situação de violência, uma pessoa pode se manter fria e sob controle, outra pode entrar em desespero e pânico, enquanto uma terceira pode desmaiar. Três modos diferentes, pessoais, de lidar com a mesma situação de estresse intenso, o que expressa três temperamentos e três histórias de vida diferentes.

Após a situação, cada um poderá viver também de um modo singular os efeitos posteriores. Um pode ficar com medo apenas por alguns dias e depois voltar à vida normal, outro poderá ficar com uma ansiedade muito grande e duradoura e não conseguir voltar à sua rotina, enquanto um terceiro poderá afundar numa profunda depressão decorrente do grande abalo causado pela experiência. Cada um reage de um modo singular às várias situações de agressão que sofre na vida, assim como às eventuais situações de violência intensa.

Os Predisponentes

Apesar de muitas pessoas viverem situações violentas, uma parcela bem menor desenvolve Estresse Pós-traumático. Pesquisas têm apontado que as experiências de relacionamento nos primeiros dois anos de vida exercem um efeito significativo sobre a capacidade posterior de uma pessoa em lidar com o estresse e manejar os seus estados emocionais (Schore, 2001, 2002).

Ao cuidar do seu bebê, uma mãe ajuda a regular os estados internos de seu filho. Por exemplo, a mãe busca acalmar o bebê ao vê-lo muito agitado. A capacidade de auto-regulação emocional ainda não está desenvolvida, e a mãe exerce esta importante função de hetero-regulação até que o bebê possa aprender a se regular por si próprio.

Os traumas relacionados principalmente a experiências de abuso e negligência nesta idade precoce têm um enorme impacto sobre o desenvolvimento da criança e do futuro adulto. Nesta época as áreas cerebrais relacionados à regulação emocional ainda estão se desenvolvendo e os traumas interpessoais precoces podem afetar o desenvolvimento cerebral, tornando uma criança mais vulnerável a uma situação de Estresse Pós-Traumático na vida adulta. Esta área de pesquisas é importante por mostrar como o cérebro se constitui junto com as experiências de vida e não apenas pelo que é dado geneticamente (Schore, 2001). Assim a psicoterapia tem um trabalho valioso ao recuperar a dimensão da experiência vivida como caminho para a transformação da personalidade e do cérebro. A psicoterapia exerce um efeito indireto e remodelador sobre o cérebro no processo de recuperação emocional de um paciente.

Os Sinais e os Sintomas

Podem ocorrer várias manifestações em pessoas que desenvolvem estresse pós-traumático em decorrência de situações violentas.

Durante o evento, por exemplo, a situação pode parecer irreal, tudo parecendo como um sonho ou pesadelo e a pessoa se sentindo anestesiada na situação. Para outras pessoas a vivência pode ser de intenso desespero e dor. A vivência do tempo também pode ficar bastante alterada e o que durou apenas alguns segundos, por exemplo, pode parecer um longo tempo, as coisas podem parecer ocorrer em câmera lenta, tudo ficando muito vívido na percepção.

Logo após o evento, muitas pessoas se mantêm num estado de “anestesia emocional”, sentindo-se distantes da situação, diminuindo sua responsividade ao mundo. Com o passar do tempo a pessoa pode ir “descongelando” e viver experiências intensas de impotência e fracasso. Algumas pessoas desenvolvem um estado mais depressivo, com perda de interesses, desânimo, embotamento emocional, estreitamento de horizontes na vida, etc.

Outras pessoas passam a ficar ansiosas, temendo que a situação se repita, desenvolvendo um padrão ansioso de distresse. A pessoa pode se lembrar repetidamente do evento, com as lembranças invadindo a sua consciência, muitas vezes lembranças dos mínimos detalhes. Há também pessoas que não conseguem lembrar nenhuma imagem da situação, ficando apenas com o efeito emocional do que ocorreu, como se tivesse sido algo dolorido demais que faz a pessoa esquecer.

Podem surgir associações entre o evento e situações específicas, levando a comportamentos de evitação, como não sair à noite, não sair de casa sozinho, não freqüentar determinados locais, etc. Intensas reações emocionais podem surgir frente a estímulos que simplesmente lembram a situação vivida, como certos sons, certo clima, certos olhares, etc.

Há possibilidade de se desenvolverem estados mais constantes de ansiedade, de alerta e vigilância, respostas exageradas de sobressalto e apreensão, dificuldade em se concentrar, atitude de desconfiança, etc.

Podem surgir sensações de irrealidade e distanciamento do mundo, fazendo tudo parecer como um sonho, com sensações de estar separado do corpo, etc. Pode haver pesadelos repetidos.

Algumas pessoas ficam mais irritadas, apresentando ataques de raiva e instabilidade emocional.

No geral as reações vão para duas direções básicas: depressão e ansiedade. Há pessoas que vão para estados mais depressivos, pessoas que vão para estados ansiosos e agitados e pessoas que se alternam entre estes dois estados.

Experiência, estresse e distresse

Após uma situação de violência, uma pessoa pode permanecer em estado alterado por períodos variáveis. É classificado como estado deestresse agudo quando a pessoa apresenta sinais intensos de estresse após o evento traumático, mas volta ao seu padrão de funcionamento normal dentro do primeiro mês. Quando as reações persistem por meses e até anos, é classificado como estresse pós-traumático. (Associação Americana de Psiquiatria,1995)

Segundo a classificação proposta por Keleman (1989), quando a reação de estresse vivida numa situação não se desfaz, ela é denominada de distresse. O nome certo de um estado permanente seria, portanto, distresse pós-traumático, porém o uso consagrou o termo estresse pós-traumático.

O estresse (quando desfaz) e o distresse (quando permanece) são respostas a situações de agressão tanto externas – que vem do encontro com o mundo – quanto internas, que decorrem do sentir dentro de si coisas além do assimilável.

Os sentimentos vividos na situação de violência podem ser excessivos e agressivos, ultrapassando o limiar de tolerância e assimilação de uma pessoa. Para alguém, por exemplo, sentir muito medo ou ódio nascendo dentro de si, pode ser extremamente assustador, de modo que a pessoa reage com forte estresse frente aos próprios sentimentos, que a agridem de dentro. Isto além da própria agressão que vem de fora.

Quando sintomas permanecem por um período mais longo, indicam que a agressão foi vivida muito intensamente, com um estado de estresse excessivo que levou à cristalização em um padrão de distresse.

Os padrões de distresse são organizações psicofísicas que mantém a pessoa paralisada num modo de funcionamento, sem poder voltar ao seu modo de vida anterior. (Keleman, 1989)

Por exemplo, uma pessoa que sofreu uma situação de violência, não conseguia mais dormir à noite, ficando alerta e atenta aos barulhos da noite, sentindo medo de que a situação pudesse se repetir. Ela evitava sair de casa, temia os olhares dos outros, temia que o agressor pudesse voltar a qualquer momento, tinha pesadelos com cenas de violência e a desconfiança dominava a sua experiência no mundo. Sua vida ficou bruscamente limitada, num estado de muito sofrimento e exaustão que já durava alguns meses quando ela chegou para o tratamento.

Observando seu corpo pudemos ver que ela estava com o olhar oscilando entre expressões de desconfiança, vigilância e medo, a visão geralmente sem foco, com perda da convergência binocular, a respiração superficial e rápida, o diafragma contraído, a postura puxada para cima, aumentando a pressão na cabeça e no peito.

Há uma relação intrínseca entre o estados somáticos e os estados subjetivos, pois os padrões motores organizam e sustentam como uma pessoa sente e percebe o mundo. (Keleman, 1987).

Há uma organização psicofísica que sustenta a pessoa no estado de distresse, criando a percepção de que o mundo é de um certo modo – no caso, hostil – e produzindo repetições infinitas de pensamentos, fantasias, pesadelos e sentimentos em torno de uma mesma questão, criada e mantida por um padrão alterado de funcionamento. Tanto os sentimentos como a percepção, os pensamentos e a postura corporal são organizados pelo padrão de distresse. Criam a realidade do perigo iminente e deixam a pessoa como se estivesse em vias de reviver a situação a todo o momento. A reação não se desfez, o alerta está lá dizendo que o perigo pode voltar a qualquer momento. A percepção da pessoa tende a interpretar tudo pela ótica do medo, tudo que a pessoa percebe é visto pela perspectiva de seu padrão ansioso de distresse.

O padrão ansioso organizado produz e mantém estados de apreensão, alerta, desconfiança, medo, confusão e pânico. Estes estados podem se alternar e se intensificar em diferentes momentos e situações.
Padrões de distresse são organizações psicofísicas que compõe modos “fixos” e “determinados” de funcionar na vida e que surgem a partir de situações que interferem drasticamente no processo existencial de uma pessoa, nestes casos, as experiências de violência. A partir da situação traumática a pessoa fica fixada e paralisada num modo repetitivo de funcionamento emocional.

O padrão de distresse se organiza através de uma forma no corpo, é uma realidade postural, sustentada pela musculatura e que afeta a motilidade interna das vísceras, o estado emocional, a percepção, os pensamentos, enfim a pessoa inteira fica organizada segundo este padrão. (Keleman, 1985, 1989).

O Tratamento

Cada pessoa em situação de Estresse Pós Traumático necessita de uma atenção cuidadosa, pois suas reações têm relação com a sua história de vida, sua capacidade de lidar com sentimentos e emoções, o impacto que a experiência teve em sua vida e a qualidade de suas experiências de vida dali para frente.

A intervenção terapêutica é um recurso necessário para que a pessoa possa reorganizar seu padrão de funcionamento e continuar seu processo de vida de modo mais saudável.

É possível sentir e ver o mundo diferente, sair da situação de sofrimento constante, através realização de mudanças nos padrões de distresse organizados.

Mediante observação atenta do corpo, do olhar, da postura, da respiração e do modo de se mover, o profissional pode identificar o estado subjetivo interno que esta pessoa pode estar vivendo. Porém tão importante quanto o profissional identificar os sinais exteriores, é ajudar e capacitar a pessoa a perceber o próprio corpo, discriminando com clareza a sua própria experiência e as conexões que há entre a sua vivência subjetiva e o modo como o seu corpo está organizado naquele momento. A partir de um desenvolvimento maior da auto-percepção é possível ensinar a pessoa a interferir em seus padrões de sofrimento somaticamente organizados, através de exercícios específicos, agindo sobre os seus padrões de distresse.

Ajudando a pessoa a perceber suas próprias sensações corporais, sua organização postural e suas atitudes organizadas somaticamente, podemos ajudá-la a perceber como o corpo está totalmente interligado ao que ela sente, vê e pensa, organizado num padrão de distresse. A partir daí podemos ajudar a pessoa a dialogar com a própria experiência através de um método eficiente, conforme proposto por Stanley Keleman (1987).

Na terapia utilizamos técnicas que atuam exatamente nos pontos que estão mantendo a pessoa em estado de distresse. Ensinamos a ela a reconhecer a organização corporal deste padrão, podendo modular, aumentando e diminuindo sua intensidade e permitindo a sua desorganização e reorganização, permitindo à pessoa criar modos mais vitais de lidar com os afetos e as situações de sua vida. Um dos objetivos é ensinar um auto-gerenciamento do estresse que possa servir como habilidade ao longo de toda a vida da pessoa.

A terapia permite restaurar a capacidade de lidar com fortes emoções internas, o que pode ter ficado comprometido desde a primeira infância. Este processo precisa ocorrer num contexto vincular de cuidado e confiança, no qual a pessoa do terapeuta, tal qual uma mãe cuidadosa, primeiro ajuda seu cliente a se acalmar, com a ajuda de técnicas específicas, para então começar a ensiná-lo a manejar melhor seus estados internos e o mundo à sua volta, visando a sua recuperação e o seu desenvolvimento.

Através deste caminho a pessoa pode voltar a viver o seu presente, e não mais ficar paralisada por uma situação que já poderia ter/ser passado.

Bibliografia de Referência

    • Associação Americana de Psiquiatria (1995). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM IV, Porto Alegre, Artes Médicas
    • Keleman, Stanley (1987/1995) Corporificando a experiência, São Paulo, Summus
    • ___________ (1985/1992) Anatomia Emocional, São Paulo, Summus
    • ___________ (1989/1997) Padrões de Distresse, São Paulo, Summus
    • Selye, Hans (1974). Stress without Distress. Nova York, NAL
    • __________ (1976/1978) The Stress of Life, New York, Mc Graw Hill, revised edition.
    • Schore, Allan N. (2001). The Effects of a Secure Attachment Relationship on Right Brain Development, Affect Regulation, and Infant Mental Health. Infant Mental Health Journal. 22, p 7-66.
    • __________ (2002). Dysregulation of the Right Brain:
      A Fundamental Mechanism of Traumatic Attachment and the
      Psychopathogenesis of Posttraumatic Stress Disorder. Australian and New Zealand Journal of Psychiatry, 36, p 9-30.

Notas:

*Voltar ao início do texto Este texto pode ser parcialmente reproduzido desde que se faça a referência do autor e da fonte.

Modo de citação sugerido: 

Scarpato, Artur (2004). Estresse Pós-Traumático: a Situação Emocional de Pessoas Vítimas de Violência.Psicologia Brasil, ano 2 n. 6, p. 10-14.

**Voltar ao início do texto Autor: Artur Thiago Scarpato : Psicólogo clínico (PUC SP). Mestre em Psicologia Clínica pela PUC SP. Possui quatro especializações na área de Psicologia: Especialização em Psicologia da Reabilitação pelo HC FMUSP, Especialização em Cinesiologia Psicológica pelo Instituto Sedes Sapientiae, Especialização em Teoria e Técnica Reichiana pelo Pulsar – Centro de Estudos Energéticos e Especialização em Educação Somática Existencial pelo Centro de Educação Somática Existencial. Trabalha em consultório particular com psicoterapia individual e de grupo. Autor de diversos artigos na área.

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