Na terapia nos movemos entre sensações, emoções, posturas, palavras, imagens, etc. Neste campo compomos cartografias junto com o cliente, tentativas de dar voz aos afetos, dar novas formas ao mundo, falar dos temores secretos, dos desejos, das dores profundas, de explorar caminhos….
Criamos na terapia um espaço de intimidade, intimidade não no sentido de contato com o conhecido, familiar, mas um espaço singular de abertura protegida pelo vínculo, onde podemos deixar vir o desconhecido em nós, o estranho, o novo.
O vínculo propicia um ambiente favorável para enfrentar as muitas adversidades, para suportar níveis altos de angústia e falta de sentido. O vínculo é um dos elementos básicos do processo terapêutico.
O vínculo terapêutico é também um campo de experimentação de modos novos de vinculação, de diferenciações em relação aos padrões conhecidos e de confrontação com os modos habituais.
Cartografar o território clínico nos permite encontrar algumas coordenadas para navegar com mais segurança em direção a processos mais consistentes de vida. A função deste texto é explorar este território a partir da influência do pensamento formativo de Stanley Keleman. Problematizar alguns aspectos da dinâmica somática do vínculo terapêutico, notadamente a instrumentalização das formas somáticas do terapeuta como recurso clínico.
(início da pág 108)
IDENTIFICAÇÃO, COMPLEMENTARIDADE E ALTERIDADE
Podemos observar quatro modos de percepção dos afetos da relação terapêutica que indicam os diferentes lugares ocupados pelos membros neste espaço dinâmico.
Vamos falar mais especificamente destes lugares a partir da perspectiva do terapeuta.
1 – Eu sou o outro:
Os sentimentos do cliente podem ser percebidos pelo terapeuta em si mesmo, num fenômeno de identificação.
Uma forma de compreender o cliente é saber se colocar em seu lugar. Sair de nossa posição de outro e compartilhar o olhar, ir junto. Buscar sentir o que o cliente sente, pensar o que ele pensa, desejar e temer como ele. Assim, antes que ele fale algo, você já sentiu, numa identificação de formas somáticas e experiências. Sentir o que o cliente sente nos permitir compartilhar a sua dor e compreender o seu mundo. Muitas vezes já estamos nesta sintonia e só então nos percebemos nela a partir da dinâmica vincular. Em outros momentos podemos imitar o cliente, buscando nos aproximar de sua vivência, repetindo voluntariamente posturas e formas somáticas, num modo ativo e rico de colocar-se em seu lugar e compreender o seu mundo.
O cliente pode também fazer o terapeuta se sentir como ele. Assim, por exemplo, um cliente está falando de situações onde se sentiu sem espaço, invadido, e ao mesmo tempo fala ininterruptamente, não deixando muito espaço para o terapeuta intervir, limitando o espaço do terapeuta na sessão. O cliente faz, de algum modo, com que o terapeuta se sinta sem espaço na sessão, invadido, como ele se sente.
2 – Eu para o outro:
O terapeuta pode ocupar um lugar de complementaridade aos afetos (pág 109) do cliente, ocupando um lugar em sua dinâmica (do cliente).
Podemos perceber o modo do cliente em relação a nós e observar a nossa tendência de resposta de complementar o seu funcionamento.
Esta é uma experiência de complementaridade, matriz de aspectos importantes da dinâmica transferencial e que será mais desenvolvido adiante no texto.
3 – O outro para mim:
O terapeuta pode perceber o que a situação despertou em si de conteúdos pessoais (do terapeuta), com o cliente ocupando um lugar na dinâmica do terapeuta.
O cliente pode ser o nosso outro. Podemos nos perceber paralisados, por exemplo, e explorando isto vemos o cliente ocupando um lugar em nosso teatro de dores pessoais. Explorando as nossas reações, nossos esboços de respostas frente a ele, podemos aprender sobre nós mesmos. E podemos compreender o cliente a partir da nossa dor, o que pode nos permitir estar com ele de um outro modo. É a contraparte da complementaridade, agora a partir do processo formativo do terapeuta.
4 – Eu e o outro:
O cliente é vivido como o outro, dois mundos diferentes.
Percebendo o cliente “de fora” podemos apreender este “outro singular” por observações, descrições, um olhar mais diferenciado sobre a pessoa à nossa frente. Na experiência da alteridade nos aproximamos do limite de apreensão do que é um definitivamente outro. Neste momento podem surgir experiências de estranhamento, susto, distância, respeito e o início de um diálogo sujeito a sujeito, não mais sujeito – objeto.
Há assim um trânsito onde o terapeuta pode se sentir sendo o próprio cliente, sentir-se e ser o outro do cliente na relação, sentir que o cliente seja o outro de si ou ainda viver a experiência da alteridade.
(pág 110) O vínculo terapêutico ocorre dentro de um continuum que vai da identificação à alteridade.
Transitamos entre estes diferentes lugares na terapia: sentir junto, ocupar lugares complementares, diferenciar-se destes lugares, viver a alteridade. Qualquer uma destas posições esclarece elementos importantes do vínculo terapêutico. A sua discriminação e operacionalização é um dos recursos preciosos da terapia.
Em cada um destes modos de relação estamos envolvidos e organizados somaticamente de um modo diferente, o que implica em níveis diferentes de vínculo e diferentes qualidades de presença.
O CORPO A CORPO DO VÍNCULO
A relação terapêutica é uma interação corpo a corpo. No sentido de que o cliente organiza um corpo frente ao terapeuta e este por sua vez responde com outro corpo.
As posturas, tensões e modulações das formas somáticas explicitam a distribuição da excitação emocional nos corpos que estão em relação naquele momento, naquele campo de afetos. Há um diálogo somático anterior ao diálogo verbal.
Um corpo ativa algo em outro corpo, um corpo convoca o outro corpo a interagir de um determinado modo, e este por sua vez responde a partir da sua realidade somática, das suas camadas somáticas mais ativas, seu repertório de formas, suas experiências.
Os corpos dialogam numa linguagem que lhes é própria, uma linguagem de formas somáticas, camadas embriológicas, tônus de tecidos, toda uma fisicalidade básica e constitutiva da vida afetiva.
Numa determinada situação, por exemplo, o terapeuta pode sentir seu corpo se arredondando, seus braços se ampliando como se fossem pegar o cliente no colo, e observa neste momento que o cliente está organizado numa forma somática onde se faz pequeno, evocando no (pág 111) terapeuta esta forma cuidadora. Em outra situação, por exemplo, o terapeuta sente seu corpo contraído, diminuído, inseguro e percebe que esta sensação advém de uma atitude do cliente, que está com seu corpo inflado e com olhar e atitude de intimidação.
As formas somáticas e a excitação emocional do terapeuta explicitam o seu lugar no campo da relação, os modos de relação daquele cliente com o mundo e daquele terapeuta com aquele cliente.
Esta experiência se torna bastante acessível quando o terapeuta experimenta o recurso de posturar volitivamente os efeitos do encontro sobre si, dando mais nitidez às afetações e às atitudes organizadas no vínculo.
Com este recurso é possível acompanhar o diálogo infraverbal das formas somáticas, ajudando a explicitar os afetos, a dinâmica, a criar um mapa do território que permite voltar a ele, orientar-se e influenciar os processos.
Assim, trazemos para o plano visível, consciente, o que se passa num plano de sensações, afetos, fluxos e nuances.
Neste campo, o terapeuta usa seu próprio corpo como referencial de orientação em relação ao que ocorre na terapia e na relação com o cliente. O corpo do terapeuta pode ser visto como um dos palcos onde se desenvolve a sessão.
Daí a importância fundamental de uma boa discriminação do próprio corpo – sensações, propriocepções, afetos – para o terapeuta navegar bem no universo da sessão.
O CORPO A CORPO DO VÍNCULO
A relação terapêutica é uma interação corpo a corpo. No sentido de que o cliente organiza um corpo frente ao terapeuta e este por sua vez responde com outro corpo.
As posturas, tensões e modulações das formas somáticas explicitam a distribuição da excitação emocional nos corpos que estão em relação naquele momento, naquele campo de afetos. Há um diálogo somático anterior ao diálogo verbal.
Um corpo ativa algo em outro corpo, um corpo convoca o outro corpo a interagir de um determinado modo, e este por sua vez responde a partir da sua realidade somática, das suas camadas somáticas mais ativas, seu repertório de formas, suas experiências.
Os corpos dialogam numa linguagem que lhes é própria, uma linguagem de formas somáticas, camadas embriológicas, tônus de tecidos, toda uma fisicalidade básica e constitutiva da vida afetiva.
Numa determinada situação, por exemplo, o terapeuta pode sentir seu corpo se arredondando, seus braços se ampliando como se fossem pegar o cliente no colo, e observa neste momento que o cliente está organizado numa forma somática onde se faz pequeno, evocando no (pág 111) terapeuta esta forma cuidadora. Em outra situação, por exemplo, o terapeuta sente seu corpo contraído, diminuído, inseguro e percebe que esta sensação advém de uma atitude do cliente, que está com seu corpo inflado e com olhar e atitude de intimidação.
As formas somáticas e a excitação emocional do terapeuta explicitam o seu lugar no campo da relação, os modos de relação daquele cliente com o mundo e daquele terapeuta com aquele cliente.
Esta experiência se torna bastante acessível quando o terapeuta experimenta o recurso de posturar volitivamente os efeitos do encontro sobre si, dando mais nitidez às afetações e às atitudes organizadas no vínculo.
Com este recurso é possível acompanhar o diálogo infraverbal das formas somáticas, ajudando a explicitar os afetos, a dinâmica, a criar um mapa do território que permite voltar a ele, orientar-se e influenciar os processos.
Assim, trazemos para o plano visível, consciente, o que se passa num plano de sensações, afetos, fluxos e nuances.
Neste campo, o terapeuta usa seu próprio corpo como referencial de orientação em relação ao que ocorre na terapia e na relação com o cliente. O corpo do terapeuta pode ser visto como um dos palcos onde se desenvolve a sessão.
Daí a importância fundamental de uma boa discriminação do próprio corpo – sensações, propriocepções, afetos – para o terapeuta navegar bem no universo da sessão.
O terapeuta é um intérprete de si mesmo, dos efeitos daquele encontro em sua subjetividade corporificada.
Quanto maior a capacidade do terapeuta em se permitir ser perpassado por fluxos afetivos na relação terapêutica, maiores as possibilidades de desdobramentos do universo existencial dos clientes na terapia.
(pág 112) Há uma certa dança, um diálogo de corpos durante a sessão terapêutica e podemos pensar como podemos acompanhar esta dança, aprender esta linguagem dançante, interativa e formativa e poder instrumentalizar esta dimensão do vínculo como um recurso para a clínica.
TRANSFERÊNCIA, PASSADO E FUTURO
Transferência e contratransferência são fenômenos do vínculo que fazem um grande sentido a partir do diálogo das formas somáticas.
A transferência é uma experiência de complementaridade na relação terapêutica. É um fenômeno de vinculação onde o modo de ser de alguém chama o co-participante a ocupar um lugar complementar numa certa dinâmica.
Há um campo emocional criando os lugares a partir do encontro.
Assim, por exemplo, um cliente pode evocar um pai no terapeuta. Os comportamentos, modo de falar e se mover do cliente evocam no corpo do terapeuta um modo paternal. O terapeuta começa a se perceber com sentimentos e esboços motores de atitudes paternais.
Por um lado, isto poderia dizer do passado daquele cliente, da reativação de sua relação com o seu pai. A transferência, neste sentido, poderia ser pensada como uma transposição de processos relacionais passados, uma transferência de tempo e lugar dos personagens de um drama.
Porém, mais do que isto, a transferência contém a história presentificada, ela é a reativação recorrente de modos e formas somáticas que se construíram a partir da relação com um pai.
Mais do que chamar o pai, o que se ativa é a memória somática de um modo de existência, ou seja, uma forma somática.
Esta forma somática, este modo de existência, se criou a partir das experiências com um pai, determinando um modo de ser com uma certa configuração somática. No vínculo com o terapeuta aparece a história (pág 113) que se presentifica nas formas somáticas.
O que se repete é uma dinâmica vincular, um modo de existência, um repertório determinado de formas somáticas, muitas vezes fixados e paralisados pelas experiência que a pessoa não pôde assimilar em sua vida. Estas formas somáticas cristalizadas interrompem o processo formativo e levam uma pessoa a responder às situações diversas com um repertório limitado de comportamentos, com modos reiterantes de sentir, pensar, perceber e agir.
A repetição destes modos somático-existenciais na terapia, por outro lado, abre a possibilidade de confronto, consciência e diferenciações dentro do processo de vida. Permite a desorganização de comportamentos limitantes e a emergência de novas formas somáticas a partir do vínculo terapêutico. Uma oportunidade de sair de um labirinto armado no passado, que paralisa o andamento do futuro.
AS VERTENTES DE FUTURO
O vínculo contém também uma função formativa, de gestação de novos territórios existenciais.
Um cliente, por exemplo, suscita no terapeuta coisas próximas do lugar de um irmão mais velho, mais formado, que possa ajudá-lo a entrar na vida adulta com mais recursos.
Cabe ao terapeuta poder ocupar este lugar neste campo de gestação de um modo de existência, permitindo a passagem de um momento ao outro do processo formativo do cliente, assim como cabe, ir desocupando este lugar em outro momento, quando este modo já não favorece mais o processo do cliente.
No vínculo terapêutico o terapeuta vai ocupar diferentes lugares para o cliente, de acordo com o que esteja em evidência no processo formativo do cliente naquele momento.
A partir da percepção dos afetos, atitudes e lugares da relação, o (pág 114)terapeuta pode reconhecer os tipos de vínculo que o cliente estabelece, o que ele formativamente está precisando.
O vínculo tem assim uma função formativa, de ajudar na desconstrução de formas desatualizadas e na construção de formas corporais contemporâneas.
No processo vincular há uma necessidade daquele lugar do outro, daquele funcionamento do outro para que o processo do cliente possa ser gestado e maturar. Acompanhar ao longo da terapia o processo vincular fornece uma referência importante das várias fases do processo terapêutico e do processo de vida do cliente.
O vínculo terapêutico é um laboratório onde novas formas podem emergir, diferenciações dos padrões habituais de comportamento, um lugar de experimentação e maturação vincular.
O vínculo, portanto, pode tanto apresentar uma reedição de uma dinâmica relacional cristalizada quanto criar uma dinâmica necessária naquele momento da vida da pessoa. O vínculo é assim tanto uma derivação do passado quanto uma vertente de futuro. Este processo é movido pelo impulso formativo, a força de criação de novas formas em direção à atualização do passado e à composição do futuro.
O CAMPO GESTATIVO VINCULAR
Trabalhando com o cliente, podemos ir aprendendo sobre o seu funcionamento, seu modo de ser habitual e o quanto isto restringe a sua vida. Observamos suas modalidades de relacionamento com o mundo, seu lugar na teia de relações pessoais, seus modos de dar e receber, mandar e obedecer, pedir e tomar, agir e esperar, etc. Podemos ajudar a esclarecer estes modos e estar juntos para ampliar os seus limites e criar novos caminhos de vida.
É necessário discriminar as sutilezas do vínculo, as variações que permitem identificar que um cliente está buscando aceitação, outro (pág 115) orientação, outro confronto e outro ainda, testando confiança. A cada momento do vínculo há questões diferentes sendo maturadas.
O terapeuta ocupa um lugar no mundo do cliente e este ocupa um lugar no mundo do terapeuta. Há um encontro do processo formativo do cliente com o processo formativo do terapeuta, criando um processo formativo daquele vínculo, numa inter-relação naquele espaço clínico.
Um elemento singular do espaço terapêutico é que o terapeuta está lá para favorecer o processo formativo do cliente, para instrumentalizar o vínculo como recurso de compreensão e intervenção na terapia.
A RESPOSTA TERAPÊUTICA
Muitas vezes um cliente não percebe os tipos de vínculo que estabelece e que contribuem, por exemplo, para que várias coisas em sua vida acabem dando errado.
Por exemplo, uma cliente veio para primeira entrevista contando histórias de rejeição, de não ser aceita pela família, de ser abandonada pelos amigos, etc. Ao longo da entrevista, ela foi provocando uma sensação muito ruim ao terapeuta, fazendo com que este sentisse vontade de mandá-la embora. Aquela pessoa estava repetindo com o terapeuta, já na primeira entrevista, uma dinâmica que ela repetiu muitas vezes em sua vida e da qual não conseguiu se diferenciar. Ela estava levando o terapeuta a querer rejeitá-la também. Caso o terapeuta fosse apenas re-agir ao seu sentimento, a teria mandado embora, dando qualquer desculpa de que não poderia atendê-la e repetindo o que acontecia no cotidiano daquela mulher. Ela sairia do consultório com as suas crenças confirmadas, seu sofrimento aumentado, seu comportamento reeditado.
Porém o terapeuta não está na situação numa posição ingênua, apenas interagindo com o cliente, mas numa posição de observação e explicitação do que está acontecendo, atento aos fenômenos em si próprio e no cliente, neste campo que vai se formando.
(pág 116) Percebendo em seu corpo as tendências à ação, porém retardando a re-ação automática, o terapeuta pode discriminar o que o move e o que sente e assim esclarecer o funcionamento daquele cliente: em que posição o coloca, se coloca, que afetos circulam, etc.
O que caracteriza a resposta terapêutica é a capacidade do terapeuta em conter a sua reação, discriminar o que sente e eventualmente apontar para o cliente a sua atitude.
Devolver para o cliente a percepção sobre a dinâmica do vínculo, como no caso desta mulher, abriria uma porta para ela perceber seus modos frente ao mundo, iniciar diferenciações frente ao seu próprio funcionamento, trazendo de volta para si o que ela só via projetado nos outros, etc.
Quando um cliente pode discriminar como vê o terapeuta, que lugar este está ocupando naquele momento para o cliente, ele está abrindo um espaço para aprofundar a auto-percepção e dialogar com suas formas, percepções e afetos.
O auto-diálogo é um dos elementos centrais do processo terapêutico formativo, onde a pessoa vai se tornando capaz de identificar as próprias formas somáticas e suas relações com a sua experiência subjetiva. A partir daí ela pode aprender modos de interagir consigo mesma e influenciar os seus processos internos, trabalhando com as próprias formas, dando início a um processo de participação ativa na construção de sua existência.
COMUNICAÇÃO DE CAMPO
Algumas vezes na terapia corre-se o risco do cliente ser atravessado por um excesso de excitação e insights que não são produtivos porque ultrapassam a capacidade elaborativa da pessoa naquele momento.
Por exemplo, em certa sessão em que caminhavam em terreno novo na terapia, o terapeuta sentiu uma certa pressão que forçava as suas costas contra a sua poltrona, na altura do diafragma. Acentuando voluntariamente (pág 117) esta pressão, percebeu organizando-se nele uma forma somática de contenção que enrijecia as suas costas e lhe dizia algo como: “pare aí, não vá mais, deixe ele elaborar o que já tem, vá devagar.” Enfim, estava sendo dito ao terapeuta o limite da capacidade de assimilação daquele cliente naquela sessão, o que pôde ser confirmado ao devolver ao cliente algumas observações sobre como estava vivendo aquele momento.
Este é um exemplo de comunicação de campo, onde o terapeuta e o cliente trocam mensagens não verbais que atingem um ao outro em sua corporeidade e se afetam mutuamente.
Em muitos momentos na terapia não é possível falar em “minhas sensações”, mas apenas de “sensações em mim”. Os afetos, sensações e modulações da forma são elementos do campo, do entre, e só é possível entendê-los a partir daquele campo formativo e seus processos.
O campo da relação terapêutica é extremamente rico de afetos e sentidos, de elementos visíveis e invisíveis. A relação terapêutica é atravessada por afetos de diversas ordens, o que faz do espaço terapêutico, o espaço do sentir por natureza. O acolhimento do sentir é uma das marcas maiores deste espaço, onde podemos receber em nós mesmos as sensações e sentimentos mais obscuros, sutis, indiretos e aceitar a vida em nós e em relação a nós.
Espaço do sentir ilimitado mas do agir cuidadoso. Esta singularidade permite uma grande exploração de muitas vertentes do existir lideradas por um compromisso ético de ajuda.
Os afetos e sensações vividos pelo terapeuta na sessão podem ser grandes orientadores sobre a dinâmica do cliente. Assim, se um terapeuta está se sentindo desconfortável na sessão, ausente, com sono, etc., deve perceber o que aquela reação diz daquele cliente naquele momento da sessão e de sua terapia, ao invés de logo pensar que a questão é sua, pessoal do terapeuta, que não dormiu direito, comeu algo que não lhe fez bem, etc. Não que estes fatos não participem da sessão, determinando em parte a qualidade de presença do terapeuta, mas focar logo sobre (pág 118) estes eventos externos à sessão pode desviar o terapeuta de algo muito importante que está se desenrolando naquele momento.
Numa determinada sessão, por exemplo, um cliente falava de sua inquietação pelo “momento agitado” que vivia em seu trabalho. Seu modo de falar, no entanto, não expressava muito de agitação, aliás, era de um tom mais contido do que agitado. Ao longo da sessão, o terapeuta foi sentindo um certo cansaço. Para o terapeuta, este cansaço começou a representar idéias como: “estou cansado de ter atendido muito ao longo deste dia, estou trabalhando muito, etc.”. O terapeuta estava vendo neste cansaço algo em si próprio e isto o deixava mais distante do cliente, um pouco ausente da sessão e tomado pelo “seu” cansaço. Até que o terapeuta ponderou se este cansaço também teria algo a ver com aquele cliente. Ao sugerir ao cliente algo relacionado a cansaço, este começou a falar de desânimo, e veio à tona uma situação de depressão que já tinha alguns anos e que não tinha surgido ainda naquele início de terapia. Essa depressão mascarada mostrou-se depois como uma das questões centrais da terapia daquele cliente. Assim, mesmo sensações do terapeuta que podem parecer simples, como uma cansaço, precisam ser observadas em suas possíveis relações com o estado do cliente e do vínculo deste com o terapeuta.
AS FORMAS SOMÁTICAS SÃO TERRITÓRIOS EXISTENCIAIS
Podemos apreender a dinâmica da sessão estando atentos aos efeitos em nosso corpo daquilo que está ocorrendo.
Segundo Nina Bull, toda ação é precedida por uma pré-organização motora preparatória. Esta pré-organização, que Keleman denomina de forma somática, permite os arranjos somáticos necessários para a construção de todo comportamento.
As formas somáticas organizam a presença, a resposta às afetações e as ações subsequentes. Por exemplo, quando o terapeuta tem a forma de (pág 119) seu corpo se arredondando frente a presença do cliente, organizando em seu corpo uma atitude acolhedora, esta forma estaria preparando um comportamento de acolhimento, com suas respectivas falas, gestos, sentimentos, assim como determinando a sua percepção sobre aquele cliente.
Porém, se o terapeuta retarda esta reação automática de acolhimento, observando em seu corpo os estados produzidos pela forma, pode discriminar as atitudes organizadas, os afetos presentes e compreender a dinâmica do vínculo, antes de agir e falar. Assim ele desautomatiza o processo para operacionalizá-lo terapeuticamente.
As formas somáticas ocorrem antes da percepção consciente, pois primeiro respondemos internamente e então nos damos conta destes efeitos se processando em nós.
Quando uma forma somática não se realiza imediatamente em ação, possibilita a emergência da auto-percepção mais discriminada. Daí a importância de se inibir e retardar voluntariamente a ação para clarear os afetos e os sentidos da experiência.
As formas somáticas são organizações motoras que criam os “modos de lidar” com os acontecimentos, são territórios existenciais organizados somaticamente. As formas somáticas são a própria construção dos territórios existenciais.
Algumas formas somáticas vão se estabilizando com o passar do tempo, criando alguns padrões motores que expressam os “modos de ser” mais característicos de cada um. Estas “formas duradouras” também nascem, fenecem e se transformam para dar conta de experiências em diferentes fases de vida.
Os territórios existenciais tem linhas de tempo próprias, no sentido de que há formas mais duradouras e formas mais efêmeras. As formas somáticas se complexificam e se diferenciam a partir dos desafios dos encontros.
(pág 120) Certas formas somáticas podem se paralisar e perpetuar pela experiência do excessivo. As experiências excessivas ultrapassam a capacidade “de lidar” de um território existencial e levam à cristalização de formas somáticas, criando modos mais estereotipados de comportamento, produzindo estagnações no processo formativo de criação contínua de formas somáticas.
Estes estados de paralisia são os estados recorrentes na clínica em busca de recuperar o processo formativo de diferenciação, desterritorialização e reterritorialização contínuos e necessários.
O olhar para o processo formativo explicita quais formas somáticas estão se criando neste momento da vida do cliente, quais formas não dão mais conta dos acontecimentos, que conflitos de formas e estratégias de vida estão presentes e quais experiências excessivas paralisaram o processo de vida e estão impedindo a criação de novas formas e respostas frente às novas situações.
DESAFIOS FORMATIVOS AO TERAPEUTA
Cada terapeuta vive a situação de atendimento a partir de sua realidade formativa, do seu repertório de formas somáticas, dos seus modos de lidar com as situações e vínculos. Um terapeuta vai sempre encontrar alguns modos mais característicos do seu jeito de estar com seus clientes, sempre haverá aquelas atitudes mais “naturais” para aquele terapeuta, a partir de seu corpo, suas formas e sua história.
Cartografar seus modos de clinicar, suas posturas corporais que se repetem nas sessões, pode ser um recurso valioso para um terapeuta acompanhar e poder influir em seus corpos de terapeuta.
Na relação com o cliente, o terapeuta também cresce. O terapeuta é solicitado a se deixar ser afetado pelo cliente, para poder levá-lo por caminhos novos, ajudá-lo a crescer, a aceitar novas afetações e buscar novas experiências.
(pág 121) Lidar com estas experiências do cliente traz também desafios à forma do terapeuta. Ele precisa caminhar para que o cliente caminhe. Por isto alguns processos terapêuticos paralisam num ponto em que o terapeuta também paralisou.
O corpo do terapeuta se coloca na terapia com suas preferências, seus modos dominantes, seus limites de tolerância, seu momento formativo.
Assim um terapeuta de algum modo também escolhe seus clientes. Isto vai poder explicar por exemplo, porque um terapeuta em diferentes momentos de sua clínica se dá conta que tem um número X de clientes com uma mesma temática tal e alguns anos depois, por exemplo, tem um número Y de clientes com outra temática predominante. Estas são temáticas do processo pessoal do terapeuta, vividas e elaboradas no processo clínico com os seus clientes. O terapeuta também chama clientes com tal e tal perfil. São estes clientes que são mandados pelo “acaso”. Entre outras questões envolvidas, são estes clientes que ficam a partir das entrevistas iniciais. A terapia é um desafio também ao processo formativo do terapeuta.
CONCLUSÃO
Atender em psicoterapia é encontrar um modo de estar ao lado do cliente, buscar uma compreensão de seu universo, esclarecer o seu mundo, as suas dificuldades, reconhecer com ele os modos habituais, as estratégias conhecidas, cartografar o processo formativo, o que não dá mais conta dos acontecimentos, o que está em vias de surgir, as transições em andamento e ajudá-lo a buscar novos modos de viver, criando novas experiências, gerenciando formas, matrizes de novos comportamentos.
As formas somáticas são relacionais. A forma de cada um vai construindo o outro e neste processo vai surgindo um diálogo de formas somáticas. Trabalhamos discriminando e atuando sobre estes processos.
Toda forma somática é vincular, toda forma somática pressupõe um outro complementar. Sendo assim, querendo ou não, percebendo ou (pág 122) não, o terapeuta é sempre chamado a uma presença somática em relação às formas do cliente.
Atentar para os efeitos da presença somática do cliente em seu corpo, permite ao terapeuta, entre outras coisas:
– Reconhecer o sentido da experiência interna do cliente pelo efeito deste na organização somática do terapeuta.
– Reconhecer o tipo de vínculo que está se estabelecendo naquele momento do processo terapêutico e o sentido formativo deste vínculo.
O terapeuta aprende a conter os afetos da relação para devolver de forma mais organizada para o cliente.
Este é um processo de instrumentalização da relação terapêutica.
A relação terapêutica é uma interação de afetação contínua, onde cliente e terapeuta estão se afetando mutuamente. O terapeuta pode reconhecer os efeitos deste campo de afetação em seu corpo e assim cartografar os processos em andamento e operacionalizar o que percebe dentro do processo formativo e clínico no espaço privilegiado da terapia.
A terapia é uma incubadora de processos formativos.